O que podemos aprender sobre símbolos com a heráldica

por Cecília Consolo

Você deve estar se perguntando que raios essa tal de heráldica tem a ver com as marcas contemporâneas. A ideia é fazer marcas no formato de escudos? Claro que não. Acontece que a heráldica foi a base para os atuais sistemas de identidade. Foi aí que tudo começou.

A origem dos símbolos para a identidade de indivíduos ou de grupos sócias é remotíssima, estão presentes praticamente em todas as culturas desde os primórdios da história. Porém, por volta do século XI nasceu um novo modo de identificação que além de identificar um indivíduo, identificava também suas posses e sua posição social. Foi a primeira vez que temos um sistema de identificação social e regido a partir de um símbolo, o escudo.

O escudo era o componente identificador principal e as demais aplicações compunham o sistema de identidade visual. A composição de elementos grafados no escudo identificava um indivíduo em particular, a qual família pertencia, a ordem de hereditariedade e a sua posição social dentro do clã familiar. O escudo identificava também as propriedades, seu feudo, seu exército e demais pertences do seu portador. Era usado como assinatura para selar documentos, acordos e matrimônios.

Para os nobres, o escudo fazia parte de uma composição maior – o brasão, que incluía outros elementos simbólicos adotados no sistema de identificação como os sargentos que são as figuras que seguram o escudo, geralmente escolhidas por sua simbologia no imaginário da época, como animais ferozes ou fantasiosos (dragões e unicórnios) por suas características e “poderes”. A coroa usada por seu portador era representada graficamente na composição e detalhes da sua indumentária com destaque para o elmo. É bom ressaltar que a heráldica, é um código de comunicação estritamente visual concebido em uma época que ninguém sabia ler, com o objetivo identificar pessoas, tanto na sociedade como no campo de batalha. Todo o sistema era construído com elementos visuais para identificar as posições dentro da tropa, diferenciar exércitos oponentes e principalmente denotar e comunicar a importância do “brasonado”.

Os brasões dos nobres ainda portavam um lema que é uma frase que comunicava o seu “posicionamento” e algumas vezes eram compostos por “endossos”. como o exemplo a seguir do Brasão da Coroa do Reino Unido. O cinturão que envolve o escudo é o símbolo da Jarreteria, ordem de cavalaria instituída em 1348. É vista como a mais importante comenda do sistema honorífico do Reino Unido, desde sua criação pelo rei Eduardo III da Inglaterra (1312-1377) até os dias de hoje. A incorporação do cinturão atribui valor ao Brasão em questão.Heráldica Anatomia Brasão

Como podem notar há muita semelhança com o nosso sistema atual de marcas. Além do escudo, (marca ou símbolo), o sistema se estendia a todos os equipamentos do cavaleiro como o cavalo (veículo de frota) que portava cobertura com a identidade visual, os escudeiros e servos (também com uniformes identificados), banners e bandeiras que sinalizavam seus acampamentos ou participações em eventos (fachadas, stands).

Para compor tantos escudos diferentes e para não haver confusões foi preciso criar uma gramática visual onde somente um único funcionário da corte poderia designar os elementos gráficos e a composição de cada escudo.

A palavra heráldica deriva da palavra heraldus do latim medieval e significa “proclamador”, que designava o funcionário da corte responsável pelo anúncio de torneios, guerras e títulos honoráveis e principalmente, por conceber e designar os escudos e brasões. Em português, heráldica pode ser traduzida também como armaria, ou parassematografia, e também se refere a arte de formar e descrever o brasão de armas. Resumindo, a heráldica é tanto um código de determinado sistema social, como um sistema de sinais que adotou o uso de símbolos para a identificação da aristocracia hereditária, no sistema feudal da Idade Média Europeia.

A grande contribuição da heráldica para os sistemas de marcas de identificação foi a adoção de cores como um dos códigos semânticos do sistema. Os símbolos de identificação do passado mais remoto poderiam apresentar cores, mas seu emprego não era relevante, com a heráldica isso passou a ser um pilar visual e conceitual.

No sistema que compunha a identidade do cavaleiro, como o escudo, indumentárias, bandeiras e todos os demais acessórios, sempre prevalecia o emprego de uma ou duas cores. Os sinais cromáticos mostraram-se mais imediatos e eficazes nos campos de batalhas, e principalmente para a identificação a distância. As cores foram incorporadas de forma pragmática para uma comunicação não verbal e imediata e a partir desse momento, permaneceram presentes em todos os sistemas de marcas, na codificação das bandeiras oficiais dos países e em vários sistemas que se seguiram, como o código de trânsito por exemplo.

Além do caráter funcional, as cores foram introduzidas de maneira conceitual. Na composição dos escudos a cor era eleita pelo seu simbolismo, por exemplo, não se escolhia entre o escarlate ou o carmim, a cor adotada era o “vermelho”, um vermelho abstrato, o signo “vermelho”, referente a coragem, ousadia, sangue. Cada artesão dotaria a nuance que fosse mais conveniente ou de acordo com os pigmentos e resinas que estavam à sua disposição na região naquela época. A cor também era adotada pelo seu caráter simbólico dentro daquela cultura e manteve-se em constante adaptação nos séculos seguintes. Durante a Idade Média, poderiam ser encontrados escudos sem figuras e sem sinais referentes à honra e conquistas, mas não houve um só escudo na história que não adotasse uma cor como elemento identificador.

Os escudos eram peças físicas, ou seja, a composição gráfica desde a etapa mais preliminar de concepção entendia o uso tridimensional do objeto, o que resolvia inúmeros problemas de aplicação comuns hoje em dia para quem pensa que a marca nasce e existe só no papel. Essa prerrogativa é extremamente útil para o design de marcas.

No processo de compor os escudos os arautos concluíram que era necessário definir alguns princípios de desenho e composição para garantir uma lógica dentro dessa gramática de comunicação e a partir de certos fundamentos foram então cunhadas 16 leis para garantir a eficácia do resultado visual. Essas leis são referentes ao desenho, ao uso e quantidade de cores, escolhas de elementos, a melhor representação de figuras naturais, a quantidade de elementos na composição, a definição da forma e do campo do escudo, a ordem de colocação das figuras e seu enquadramento, e outras eram alertas para usos inadequados que resultariam em um desenho ruim.

Como podem ver o que nos interessa da heráldica é justamente as leis de concepção dos escudos e não a gramática que regia o código para atribuir posições sociais e militares.

Agora deixo uma pergunta para os curiosos, como podem esses escudos concebidos há quase dez séculos continuarem imutáveis e eficazes como desenho até hoje, sendo ainda amplamente utilizados em alguns países e, muitas marcas contemporâneas não conseguem sobreviver nem quatro anos sem um redesign?

O Duque da Bretanha e Bourbon

O Duque da Bretanha e Bourbon, em duelo de torneio entre 1440-1450, pintado pelo Rei René d’Anjou, extraído do Livre des Tournois, França, século XV. O aparato do cavaleiro é em si mesmo um conjunto de identidade. Tanto o escudo, o cavaleiro como o cavalo e demais acessórios eram regidos pela mesma composição gráfica.

Cecilia Consolo é designer e doutora em Ciência da Comunicação pela USP. É sócia diretora da Consolo & Cardinali Design cuja atuação profissional se concentra na gestão de marcas, planejamento e design estratégico. Dirige também o Lab Cognitivo, escritório centrado em inovação para posicionamento e extensão de marcas. É professora na graduação e pós-graduação da FACAMP – Faculdade de Campinas. Pesquisadora, junto a USP e a UNICAMP. É autora do livro MARCAS – Design Estratégico, em 2015, e mais outros títulos publicados pela Editora Blucher. Para quem quer aprofundar a leitura sobre heráldica encontra aqui: ARTIGO e LIVRO.

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