Coincidência? Vamos falar sobre plágio?

Por Cecilia Consolo


O antigo debate sobre o que é e o que não é plagio atormenta o sono de muitos profissionais. Recentemente, em setembro de 2017, fui solicitada a dar um parecer em um processo judicial sobre autoria. A questão, que aparentemente era fácil de ser esclarecida, me motivou a tentar entender e aprofundar mais o debate. As coisas não são tão simples. O processo recaía sobre o uso indevido de ilustrações (que constavam no portfólio on-line do designer), algumas foram publicadas em produtos do varejo, adquiridas pelo recurso copy and paste. E outras, com algumas “mexidinhas”, também foram usadas em peças de vestuário.

Para preparar meu parecer, senti a necessidade de esclarecer alguns conceitos, como estilo, influência, inspiração e os fundamentos do design.

O Design Gráfico está apoiado sobre fundamentos sociais e princípios gráficos para a elaboração de uma série de projetos visuais. Os elementos básicos do desenho, como a linha, o ponto e o plano, articulam-se em organizações espaciais com as quais é possível construir inúmeras estruturas nos planos bidimensional e tridimensional. Os princípios estruturantes são:

1 – Forma.

2 – Composição.

3 – Equilíbrio: distribuição, balanço, tensão espacial.

4 – Alinhamento, construção, relação, ancoramento.

5 – Hierarquia, ênfase, contraste.

6 – Proporção.

7 – Direção, movimento.

8 – Repetição, ordenação.

9 – Unidade.

10 – Cor.

Com o domínio desses princípios, é possível construir ilimitadas imagens e mensagens visuais. Ninguém é dono de uma forma geométrica básica, ou de uma cor, ou de um grid. Porém, o desenvolvimento de um trabalho gráfico nos coloca diante de uma série de decisões formais e conceituais. Sofremos influência da mídia, da moda, das tecnologias, da materialidade e da imaterialidade que compõem nossa cultura. As estruturas “textuais” embutidas nas mensagens visuais são decorrentes de decisões ideológicas, o que se pretende dizer a alguém e como. Nesse momento, estamos vivendo uma polarização, principalmente nas redes sociais, em que ninguém opta pelo consenso; em qualquer discussão, nos cobram uma posição relativa aos extremos. Nada pode ser sutil.

O propósito de um trabalho gráfico está submetido a um contexto e uma retórica, ou seja, a proposta que o autor deseja comunicar, como ele o faz e para qual audiência. Caso não haja uma intenção comunicativa, estaremos falando de uma expressão pessoal ou artística, o que implica também a formatação dos mesmos elementos básicos (a linha, o ponto, o plano, a cor etc.) para proferir as emoções do autor.

Sendo um trabalho de design, o autor parte de premissas e sintetiza o conjunto de todos os princípios relacionados a desenho e comunicação, ou seja, decide a melhor estrutura para dar forma ao conteúdo a ser comunicado. Define a linguagem gráfica apropriada ao público para o qual será direcionada. Elege os elementos gráficos-chave para aderência e memorização do sinal ou mensagem pelo público a ser impactado.

Na procura por elementos precisos, pode o designer buscar inspiração por vários caminhos. Lembrando que inspiração é um processo ativo, é nosso caminho até determinada fonte. Aqui já é possível ocorrerem alguns problemas. O designer pode observar ao seu redor, observar as linguagens gráficas vigentes, estudar estilos consagrados ou se basear nas tendências. Esse processo pode fazer com que o trabalho comece bem ou comece mal. Todo profissional almeja a originalidade, o que significa algo singular que ainda não foi feito. Mas, se todos os elementos usados na construção de um projeto são fundamentos nativos de qualquer projeto, a tarefa não é das mais fáceis. A diferença está em onde buscar inspiração: longe dos caminhos óbvios. Como exemplo, um desafio que seja desenhar um símbolo para esporte que demonstre dinamismo. Caso o designer busque referência na Nike, provavelmente seu raciocínio sofrerá influência da expressão gráfica da marca. A influência é um processo passivo, é preciso muita força de vontade para não ser atingido.

Nike

Observar o que acontece em um setor específico nos ajuda a colocar nosso projeto numa mesma “vibe”, afinal, o projeto precisa comunicar certos conceitos ao público de interesse, mas atenção para o risco de cair em uma monotonia pasteurizada que não diz mais nada a ninguém. Tudo acaba parecendo mais do mesmo. É muito importante encontrar elementos identificadores próprios de cada projeto. Decididos os pilares visuais de seu discurso, o designer estrutura sua mensagem visual e o projeto.

Qualquer trabalho realizado por um designer é um trabalho autoral, e a autoria é inalienável, não pode ser transmitida. O que comercializamos são os direitos patrimoniais sobre o uso, portanto todo designer é o responsável em litígios sobre plágios, e não o cliente. O que evoca obrigatoriamente a necessidade de originalidade ao se pensar um projeto. Salvo em alguns raros casos, em que o designer decide fazer uma citação, apropriando-se de parte ou totalmente do trabalho de outro designer. Isso requer muita maestria e o objetivo é realmente a referência ao trabalho alheio, que provavelmente já se tornou um clássico e é amplamente conhecido. Em alguns casos, pode o designer fazer uso desse recurso para criar uma paródia ou metáfora, como acontece tanto em outras áreas como o cinema e a literatura.

Franz Ferdnand

A capa do álbum da banda Franz Ferdinand, de 2005, como todos os materiais gráficos da banda, faz referência ao cartaz construtivista “Livros”, para o departamento estatal da imprensa de Leningrado (Utilizando a foto de Lilya Brik), 1924, na antiga União Soviética.

Missão Impossível

Missão Impossível paródia

A clássica cena do filme Missão Impossível, de 1996, que já surtiu todo tipo de paródia.

 Paula Scher

Cartaz de Herbert Matter promovendo o turismo na Suíça, 1935. E a apropriação de Paula Scher para o cartaz dos relógios Swatch, 1984.
https://eyeondesign.aiga.org/design-history-101-paula-schers-copycat-1984-swatch-poster/

A apropriação, tanto no caso da citação quanto no da paródia, não esconde a fonte, pelo contrário, conta com o conhecimento prévio do público sobre a origem e o contexto original, é nisso que a mensagem se apoia, e sem incorrer em problemas com direitos autorais.

Todo trabalho autoral tem uma energia interna, mas, ao mesmo tempo, corre-se mais riscos. Por esse motivo, a publicidade costuma fazer uso da repetição de certas soluções. Cada mensagem veiculada envolve milhões, e é mais fácil bancar ideias já testadas. Quando é uma imitação, entendemos que o designer partiu de uma referência que faz parte da cultura, cujos elementos estão presentes no imaginário sobre o tema e, a partir desse pressuposto, decide incorporá-los ao projeto. Todo nosso processo de aprendizado é baseado na imitação, assim aprendemos a falar, a dançar, e tantas outras competências, até o momento em que o conhecimento é vivenciado, incorporado dentro de nós ao ponto de se chegar à própria interpretação. Então, uma mesma sequência de passos se torna sublime nos pés de um dançarino excepcional. Quando a imitação é só replicar o mesmo processo, sem chegar à interpretação, o resultado sempre gera polêmica e grande debate sobre: é cópia ou não? É influência? É tendência?

Eu, particularmente, não consigo mensurar os ganhos nesses casos.

Porto e Pinacoteca

A identidade Visual realizada pela Saatchi Saatchi, projeto desenvolvido para a identidade visual da cidade de Porto, em Portugal, que se baseia principalmente na azulejaria, 2014. E a Identidade Visual da Pinacoteca do Estado de São Paulo, trabalho realizado pela F/Nazca, 2016.

No universo da cultura, é muito difícil classificar um trabalho como absolutamente novo, sem influências, pois tudo sofre influência. Mas é possível falar de propriedade, já que cada trabalho nasce de uma sequência de decisões, o que culmina sempre em um resultado único. Mesmo no trabalho de artistas que copiam atenciosamente quadros dos grandes mestres da pintura, como exercício para se aprofundar na obra, é possível identificar diferenças visíveis.

A análise da qual parti era para definir a noção de cópia ou plágio, portanto concluo que uma cópia se debruça sobre o trabalho alheio sem o processo de decisões e estratégias exigidos para atender a um propósito. Ela existe a partir da ideia do outro. Geralmente vazia de significado. Fica clara a ausência de prerrogativas e aponta, de imediato, que se trata de um delito. É o uso da imagem pela imagem. Cópia e plágio são desabonadores da mesma forma. O plágio é a cópia fiel, na maioria das vezes, se trata de um roubo, adquirida a imagem sem licença e a aplicando a outro projeto por recursos do Photoshop. É fruto de um profissional preguiçoso, que usurpa e incorpora a imagem original, contornando o mesmo traço, estilo e solução cromática.

Tanto a cópia como o plágio podem ser desmascarados com um pouco de atenção.

Nem mesmo os mais talentosos calígrafos ou copistas do passado conseguiam fazer o mesmo traço idêntico, na mesma posição e proporção, pelo desenho livre. A conclusão a que chego é de que seria muito improvável trabalhos de autores diferentes resultarem nos mesmos desenho e solução. Linguagens e semelhanças conceituais hão de ocorrer, pois atuamos em determinada época e contexto cultural. O trabalho do designer gráfico não está no campo das ciências exatas, e sim inserido nos processos de comunicação, o que envolve várias decisões afetivas. Coincidências ocorrem, mas um olhar mais atento entende o raciocínio de um projeto e de outro, mesmo que apresentem semelhanças, ou sigam alguma escola de design. Tendências ditam moda, são usadas à exaustão até o ponto em que ninguém mais suportará tal solução gráfica e esta ficará datada no tempo.

Um trabalho feito do zero, procurando resolver aquela demanda específica, exige uma série de decisões, e, quando atendidas, ninguém discute a pertinência ou originalidade das soluções. Seria impossível usar uma mesma sequência de traços e cores, nos mesmos tons, e produzir as mesmas imagens idênticas a outro projeto, a não ser que fosse essa a intenção.

Se cabe aqui uma sugestão, creio que os autores não deveriam ver referências, e sim aprender novos raciocínios de projetos. Não colecionem imagens como “referência”, estudem cases.

Ressalto que é sempre oportuno que qualquer designer cuide de seus projetos, ao divulgar seus trabalhos nos canais digitais, informem que todos os direitos são reservados e não é permitido nenhum tipo de uso sem prévia e explícita autorização.

* O Children’s Museum of New Hampshire é um museu e espaço comunitário na cidade de Dover, em Nova Hampshire, nos EUA. Em 2014, o escritório Haigh + Martino,também de Nova Hampshire, apresentou o redesign da marca e a agência foi responsável por criar as diversas aplicações da identidade visual. Em 2015, um novo logotipo do Criança Esperança da Rede Globo foi a público em comemoração aos 30 anos da iniciativa. Link para matéria do Com Limão.


CECILIA CONSOLO

Cecilia Consolo é designer, consultora, palestrante, professora e parecerista. Doutora em Ciência da Comunicação pela USP, professora na Pós-graduação de FACAMP e atua como designer e gestora de marcas há mais de 35 anos, atendendo marcas nacionais e internacionais. Atualmente é sócia-diretora, desde 1987, da Consolo e Cardinali Design e dirige também, desde 2006, o Lab Cognitivo, um escritório voltado ao design research, fornecendo análises referentes à percepção sobre o imaginário das marcas e seus produtos. Ministra workshops e cursos in company para desenvolvimento e inovação de novos produtos e serviços, como também para a definição de essência e posicionamento das marcas. É autora dos livros MARCAS – Design Estratégico e Anatomia do Design Brasileiro, ambos pela Editora Blucher.

eu@ceciliaconsolo.com.br


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