Aloha!
(Importante abrir esse texto dizendo: ele reflete a opinião do seu escritor, que busca colocar um ponto de vista na discussão. Estamos longe de tentar afirmar uma verdade absoluta, até porque ela nunca existe. 🙂 )
A Cinemateca Brasileira é a instituição responsável pela preservação da produção audiovisual brasileira. Desde 1940, desenvolve atividades em torno da divulgação e da restauração de seu acervo, com cerca de 200 mil rolos de filmes. [Wikipedia]
Criada há 70 anos, a Cinemateca Brasileira é uma daquelas instituições sem fins lucrativos que fazem um trabalho maravilhoso mas pouco conhecido pelo grande público.
O logo da instituição foi criado por Alexandre Wollner em 1954. E esse logo é o objeto dessa pequena reflexão.
Claro que as brincadeiras com o logo em questão não perdoam. E não é de se espantar que a internet e suas redes sociais fizeram com a zueira o mesmo que faz com tudo: amplificou. Na página da instituição no Facebook sempre existem comentários. No Twitter há pessoas falando sobre a dupla interpretação do logo há muitos anos, só pesquisar.
Para “acabar” de vez com isso, e aproveitando a comemoração dos 70 anos da instituição, a Cinemateca lançou um video no últimos dias explicando o conceito do logo.
https://www.facebook.com/cinematecabr/videos/1125714580839706/
“Foi uma demanda que a gente sentiu de responder alguns comentários. Sempre há insinuações fálicas sobre o logo. Há um estudo artístico por trás dele e todo um conceito. A gente achou que agora era o momento certo por causa dos 70 anos da Cinemateca. Esse vídeo faz parte uma ação para celebrar a data.”, disse Leandro Pardi, coordenador de difusão da Cinemateca Brasileira, ao UOL.
É uma representação “wollneriana” de um corte transversal de projetor de filmes.
O problema entre a mensagem desejada pelo criador/detentor e a interpretação do seu público
Problemas de interpretação de mensagem é assunto recorrente em qualquer faculdade de comunicação, como por exemplo a famosa sentença “a mensagem do emissor só pode chegar plenamente ao receptor se não houver interferência”. E acredito que é exatamente disso que estamos falando aqui.
Há muito tempo um amigo me contou sobre um projeto que ele estava desenvolvendo com sua equipe. Um monograma de três letras para representar uma determinada empresa. Cada letra era a inicial do nome de um dos sócios. O monograma era muito inteligente e bem desenhado, mas havia um problema: uma das letras era mostrada de maneira implícita no monograma, o que resultou em um desconforto com o sócio representado por ela. Claro, houve um pequeno atrito.
Ao conversar com esse amigo, dei uma opinião que talvez não fosse a que ele quisesse ouvir: apesar de lindo o projeto, de bem amarrado, de representar muito bem o negócio em questão, de ter passado em todos os testes e pesquisas e etc, ele poderia causar um erro de interpretação. E não era um problema de ego, mas de interpretação mesmo: alguns viam a tal letra, outros não. O dono da letra não.
Esse caso da Cinemateca Brasileira é um tanto quanto emblemático e deveria integrar as discussões em nossas salas de aula. O que é mais importante: o conceito e a mensagem desejada pelo emissor (marca) ou o conceito e mensagem percebido pela receptor (público geral)?
Há quem diga que o símbolo representa muito bem a Cinemateca e que qualquer outra dupla interpretação é falta de cultura e/ou excesso de infantilidade. O nosso querido coordenador da instituição disse que “há um estudo artístico por trás dele e todo um conceito.”, usando como ferramenta de justificação do trabalho
Olha, discordo. Muito. E vou tentar explicar o porquê.
A maldade nos olhos de quem vê. Será?
Durante o curso de Design Estratégico que fiz com a Cecília Consolo, sempre ouvíamos dela que nenhum projeto de design, seja ele qual for, pode ter êxito sem levar em consideração a cultura e o repertório das pessoas as quais se destina esse projeto. E eu concordo muito com essa linha de raciocínio. O Design tem propósito, tem razão para existir, tem um problema para ser resolvido.
Como disse esse é apenas um dos pontos de vista desse caso e alguns vão discordar, principalmente os mais acadêmicos. Mas aqui fora, no mercado, no mundão selvagem onde existem trezentas mil marcas concorrendo com a sua, ou você cria relevância e se diferencia ou você cria relevância e se diferencia.
Costumo dizer que não existe certo ou errado quando estamos falando de design. O que existe é a estratégia e solução mais (ou menos) adequado para o contexto e a problemática a ser resolvida.
Uma vez durante as aulas de Oficina de Texto, minha querida professora Gabriela Coppola disse “fujam das sentenças de duplo sentido. A não ser que o duplo sentido seja o que você quer no texto”. Mais uma vez, contexto! E como podemos afirmar que isso não se aplica ao desenho de símbolos, que tem um potencial subjetivo exponencialmente maior do que palavras?
No design de interfaces, o que mais se prega hoje é o designer ser capaz de criar telas de fácil entendimento e que não venham gerar dúvidas no ser humano que faz uso da interface. Então, por que um símbolo que não é claro pode existir? E a culpa ainda ser dos que não o entendem?
Ah Daniel, mas ai você está matando a criatividade e subestimando a capacidade das pessoas.
Eu acredito exatamente no oposto. Criatividade não tem a ver com fazer o que quer e dizer que aquilo significa o que eu bem entender. Tem a ver com projetar entre as diversas restrições que um projeto possui. Uma delas, com certeza é saber o que a pessoas estão vendo no que foi desenhado.
Alguns entendem que trabalhar com contexto é matar o Design, ou deixar o Design chato. A meu ver desconsiderar o contexto é, na melhor das hipóteses, fazer arte; na pior delas, incompetência disfarçada de intelectualidade.
E não, isso não é um ataque de viralatismo.
Quem não se lembra do emblemático caso do novo logo da OGC (Office of Government Commerce), orgão estatal do Governo Britânico para o comércio. Em 2008 o logotipo do escritório passou por um redesign. Depois de lançado o novo logo, foi encontrado um mensagem subliminar nas letras ao girá-lo em 90 graus. Mesmo assim, o logotipo foi usado até 2011, quando o escritório foi encerrado. O redesign foi notícia no mundo inteiro.
O caso da Cinemateca Brasileira trás um problema maior, pois não é necessário virar 90 graus o símbolo para se ter o segundo significado.
Quando a cultura e o conhecimento coletivo sobrepujam a estratégia e o conceito
Quando você lê a palavra Isis, provavelmente se lembra do Estado Islâmico, organização jihajista que tem preenchido a pauta de noticiários no mundo todo dado seus atos. Contudo, você sabia que esse nome já era usado por muitas empresas antes da repentina ascensão dessa organização em 2014? Com sua fama se espalhando em todo o planeta, mais de 270 marcas só no EUA tiveram que mudar seus nomes. Entre elas a Isis Pharmeceuticals (que agora é Ionis Pharmeceuticals). Tanto as grandes como as pequenas empresas que possuíam a tal palavra em seu nome tinham algo relacionado com a organização Estado Islâmico? Claro que não. Então como se deu tal ligação?
O bombardeamento de notícias no mundo todo ligando tais atos a um nome especifico criou uma marca. Um nome que recebeu um significado compartilhado pelo coletivo. Pouco importa que a Ionis Pharmeceuticals usava esse nome desde 1989, ele passou a significar “extremismo, terror, guerra e etc”, e não mais remédio contra colesterol.
Pelo mesmo princípio existe a garantia jurídica de que não se pode registrar o nome Coca-Cola em qualquer classe, mesmo uma que nada tenha a ver com bebida gaseificada não-alcoolica. Isso porque já existe um significado maior a tal nome e que é de domínio do grande público.
Ambas as referências podem parecer esdruxulas, mas o princípio é o mesmo: se existe um significado maior e que é compartilhado pelo coletivo/maioria, dificilmente você poderá usar esse símbolo/nome sem que tal significado seja evocado.
E existem muitas marcas que, se atuantes no mercado brasileiro, precisariam mudar de nome. Um exemplo real é da Changan Automobile. Ou mesmo marcas que precisaram mudar em outros mercado, como a linha Pajero da Mitsubishi quando estreiou em mercados que falam espanhol. Acontece!
Questões de referência também depõem contra o símbolo da Cinemateca Brasileira
Podemos continuar o argumento do contexto apresentando outro problema no símbolo da Cinemateca: a referência. Com o video fica claro, para quem não sabia, que o logo é uma representação de um corte transversal de projetor de filmes. Mas agora, pergunta para uma criança de 10 anos como se faz um filme. Muito, mas muito provavelmente ele irá te apontar o celular e o Youtube. Até para mais velhos, a ideia de projeção está mais ligada a um projetor multimídia (ou data-show) ou mesmo ao Moto Snap de projeção do ultimo celular da Motorola do que a um projetor de filmes em rolo de 1900EBolinhas.
E não, não estou sendo desrespeitoso com o projeto. É uma questão (lá vamos nós de novo) de contexto.
Em 1954, muito provavelmente o público culto da capital paulista entendia muito bem essa referência. Aliás, qualquer pessoal que tinha contato com cinema ou uma projeção de filme, podia entender. Mas já se passaram mais de 50 anos desde de que esse símbolo foi criado e redesenhado. O que se entende por projeção de filmes mudou. Novos símbolos para filmes passaram a existir. As pessoas passam a vida toda sem ver um projetor de filmes em rolo. A referência dele não faz mais sentido para a grande maioria.
O criador não é suficiente para justificar a criatura
O logo da Cinemateca Brasileira é como tudo o que o Wollner fez: tecnicamente impecável. Olha os desenhos, os grids, os cálculos, tudo de mais espetacular que Wollner aprendeu em Ulm foi aplicado nesse projeto. Mas não é a técnica que torna um projeto bom ou não. Não é mostrando o grid de criação ou a explicação do mesmo que faz com que ele tenha êxito. Não é o nome do designer ou do escritório que fará com que o projeto seja bem sucedido. Tudo nessa vida é bom até no momento que não é mais.
Alguns mais xiitas pode dizer coisas como “quem somos nós para questionar o trabalho do mestre Wollner”, coisa que já vi gente de nome no mercado falando, por exemplo, em relação ao redesign da American Airlines e ao logo do saudoso Massimo Vignelli.
O trabalho do Wollner, do Vignelli, da Paula Scher, do Aloiso Magalhães, seu, meu e todos os designers do mundo é bom até o dia que não for mais. E pronto. Isso não é demérito nenhum, muito pelo contrário. O criador não pode ser um inibidor de evoluções e mudanças. Você muda. Eu mudo. O mundo muda. As pessoas mudam sua forma de se relacionar com o mundo, mudam seus gostos, mudam suas referências. Tudo se altera com o tempo para se adequar ao tempo. Nada é imutável. Por que um símbolo não pode ser mudado? Só porque foi o designer Fulano de Tal que fez? Se não estiver funcionando precisa ir pro lixo, doa a quem doer. Não estamos falando de arte, estamos falando de negócios, de reconhecimento de marca, de engajamento, de empatia, de brand awareness, de recall de marca, de poder estampar o logo em um monte de material licenciado e sair vendendo por ai aos montes, das pessoas comprar esses produtos aos montes porque gostam do trabalho que sua instituição faz e querem participar, querem exibir essa marca; e não ter vergonha de mostrar tal marca e de fazer piada dela.
Nem mesmo dizer que existe um conceito por trás do desenho se justifica. A subjetividade é inerente ao ser humano e precisa ser respeitada. Sinais abstratos tendem a ter interpretações diferentes. Por isso as marcas se comunicam e se fazem conhecer, mais ou menos com o a Cinemateca quis fazer com o video lá de cima. Mas não é esse o caso. Estamos falando de um segundo sentido no símbolo que é visto pela grande maioria. Isso não pode ser simplesmente ignorado, ou mesmo taxar os que assim vê de “sem cultura”. Quero dizer, poder pode. Mas não deveria. Tal posição soa altiva e quase que segregadora.
O símbolo é bom, mas no nosso atual contexto ele já tem outros significados que não são desejáveis para a instituição, e ela não pode controlar isso. Pode aceitar e mudar (dá para pensar em manter o conceito e rever o desenho por exemplo), ou pode ignorar e fazer de conta que não existe tal associação.
Conclusão
O trabalho do designer não é projetar/desenhar para si mesmo, para seu prazer, para ganhar prêmios, para receber tapinha nas costas dos coleguinhas. Não estamos fazendo nada para nós, mas para o grande público. Isso é Design! Se as pessoas tiverem dificuldade de navegar no aplicativo da marca do nosso cliente, não conseguirem encontrar e ler uma informação, ou entender o logotipo e/ou símbolo de forma completamente equivocada, significa apenas uma coisa: que falhamos.
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